domingo, 29 de setembro de 2013

São Jerônimo

Xangô Senhor da Justiça e também sincretizado com São Jerônimo cujo nome significa " o que tem um nome sagrado". Nasceu na Dalmácia (Iugoslávia) no ano 342 e consagrou toda sua vida ao estudo das Sagradas Escrituras e é considerado um dos melhores, se não o melhor, neste ofício.
Em Roma estudou latim sob a direção do mais famoso professor de seu tempo, Donato, que era pagão. O santo chegou a ser um grande latinista e muito bom conhecedor do grego e de outros idiomas, mas muito pouco conhecedor dos livros espirituais e religiosos. Passava horas e dias lendo e aprendendo de cor aos grandes autores latinos, Cicero, Virgilio, Horácio e Tácito, e aos autores gregos: Homero, e Platão, mas quase nunca dedicava tempo à leitura espiritual.
Jerônimo se dispôs ir ao deserto a fazer penitência por seus pecados (especialmente por sua sensualidade que era muito forte, por seu terrível mau gênio e seu grande orgulho). Mas lá embora rezava muito, jejuava, e passava noites sem dormir, não conseguiu a paz, descobrindo que sua missão não era viver na solidão.
De volta à cidade, os bispos da Itália junto com o Papa nomearam como Secretário a Santo Ambrósio, mas este adoeceu, e decidiu nomear a São Jerônimo, cargo que desempenhou com muita eficiência e sabedoria. Vendo seus extraordinários dotes e conhecimentos, o Papa São Dámaso o nomeou como seu secretário, encarregado de redigir as cartas que o Pontífice enviava, e logo o designou para fazer a tradução da Bíblia. As traduções da Bíblia que existiam nesse tempo tinham muitas imperfeições de linguagem e várias imprecisões ou traduções não muito exatas. Jerônimo, que escrevia com grande elegância o latim, traduziu a este idioma toda a Bíblia, e essa tradução chamada "Vulgata" (ou tradução feita para o povo ou vulgo) foi a Bíblia oficial para a Igreja Católica durante 15 séculos.
Ao redor dos 40 anos, Jerônimo foi ordenado sacerdote. Mas seus altos cargos em Roma e a dureza com a qual corrigia certos defeitos da alta classe social lhe trouxeram invejas e sentindo-se incompreendido e até caluniado em Roma, onde não aceitavam seu modo enérgico de correção, dispôs afastar-se daí para sempre e se foi a Terra Santa.
Seus últimos 35 anos os passou em uma gruta, junto à Cova de Presépio. Várias das ricas matronas romanas que ele tinha convertido com seus pregações e conselhos, venderam seus bens e se foram também a Presépio a seguir sob sua direção espiritual. Com o dinheiro dessas senhoras construiu naquela cidade um convento para homens e três para mulheres, e uma casa para atender aos que chegavam de todas partes do mundo a visitar o lugar onde nasceu Jesus.

Com tremenda energia escrevia contra os hereges que se atreviam a negar as verdades de nossa Santa religião. A Santa Igreja Católica reconheceu sempre a São Jerônimo como um homem eleito Por Deus para explicar e fazer entender melhor a Bíblia, por isso foi renomado Patrono de todos os que no mundo se dedicam a fazer entender e amar mais as Sagradas Escrituras. Morreu em 30 de setembro do ano 420, aos 80 anos.

domingo, 1 de setembro de 2013

Da `Nbandla à Umbanda: Transformações na Cultura Afro-Brasileira

Wilson do Nascimento Barbosa[1]

Resumo: Este artigo aborda o desenvolvimento da Umbanda no Brasil e a analisa em três fases caracterizadas por: (1) 1850-1913 - `Nbandla; (2) 1913-1960 – A Umbanda Empretecida; e, (3) 1960-1990 – A Umbanda Embranquecida. Tal periodização esclarece os elementos de composição desta religião afro-brasileira e a relação com a construção de identidades múltiplas num ambiente social repressor destas práticas religiosas.

Palavras-chave: Umbanda; Religião Afro-Brasileira; Religiosidade Bantu; História das Religiões.

Periodização.
A palavra bantu ou `nbantu “`Nbandla” quer dizer em sua acepção principal “a congregação mais antiga”. Esta associação ou congregação mais antiga certamente assumiu este nome público, em outro tipo de sociedade, para separar-se, ou não ser confundida com uma outra associação, esta sim, por certo, “mais nova”. Poder-se-ia supor que seus adeptos deste modo fixavam sua prioridade e certamente estavam a indicar um grau de pureza, distinta daquela ou daquelas associações mais novas.
Ao longo do tempo, contudo, este termo importado da África e da Cultura `Nbantu de seus importadores, terminaria por designar algo bem distinto daquela pureza original que o novo pretendia. Para fins de exposição, dividir-se-á o momento da `Nbandla no Brasil em três fases distintas, desde uma primeira detecção.
(1) 1850-1913: `Nbandla
(2) 1913-1960: A Umbanda Empretecida
(3) 1960-1990: A Umbanda Embranquecida

(1) A `Nbandla
Nos anos (18)40 e (18)50 foi constante a referência, nas páginas dos jornais do Rio de Janeiro e São Paulo, de reuniões de pretos (nomes dos negros de então), com finalidade aparente de praticar a religião. Tais reuniões, quando descobertas ou denunciadas, eram dissolvidas a pata de cavalo ou a golpe de bastões policiais, sendo seus praticantes recolhidos presos, quando não logravam fugir. A partir dos anos (18)50, é nítida a separação de semelhantes “pagodes”, sempre destruídos, em duas famílias, o Candombe ou Candomblé e a Macumba ou Imbanda. Aparece, portanto, pela primeira vez (1853) a `Nbandla bantu como ramo independente das religiões ou “cultos” afro-brasileiros.
Todos já sabem, mas é bom recordar que “Candomblé” é uma corruptela para “dança com tambores”, dito depreciativamente “barulho de tambores”. “Macumba”, por sua vez, palavra bantu, vem de CUMBÊ ou KUMBÈ, com qualquer grafia significando “dança de tambores”. O prefixo MA oferece-lhe ênfase, podendo ser traduzido como “muito poderosa”. Tratava-se, portanto, em ambos os caos, de uma dança mágica, mística ou religiosa ao som de tambores, que as autoridades instituídas não desejava preservar. Os mestres antigos dessas religiões afro-brasileiras diziam que só os viventes podem arrastar o pé no chão quando dançam, daí decorrendo o caráter sagrado do terreiro, ou do piso de terra (a terra era então importante), onde se davam as práticas religiosas.
Quanto ao nome de “pagodes”, eram dados por deboche pelas autoridades policiais, em virtude do caráter enfeitado e complicado dos rituais e dos instrumentos de culto ali evidenciados. Os objetos eram recolhidos ou ali mesmos destruídos.
Segundo interpretações verbais de antigos praticantes, é possível reconstituir algo – mas não o suficiente – da diferença entre as “bandas” existentes nas religiões afro-brasileiras de então. Os contextos das construções religiosas no período 1780-1850 eram sabidamente três: (a) um contexto indígena, formado pelas populações aborígenes à época dispersas nas matas brasileiras; (b) um contexto europeu, formado nas aldeias litorâneas e outras poucas tomadas cultural e/ou militarmente aos indígenas e convertidas em vilas, cidades e missões e/ou fazendas do colonizador; e (c) contexto afro-indígena, que compreendia o ambiente de encontro entre africanos e indígenas no trabalho escravo, nas populações que das fazendas fugiam para o interior, etc.
Cada um destes três contextos fornecia um ambiente básico para o desenvolvido das crenças e religiões de cada grupo de acordo com sua etnocultura, dando-se aproximações tanto do tipo sincrético como do tipo estanque e compartimentado.
A `Nbandla foi assim uma ideologia social de importância nas condições do século XIX, em função do grande número de componentes dos povos Nbantu, que na realidade sócio-cultural de então conformavam as populações locais brasileiras. No que se refere às aproximações com outras religiões, a destruição massiva dos elementos de culto e dos rituais eliminou a possibilidade de uma reconstituição dos caminhos culturais percorridos. Sabe-se do entrejogo entre as diferentes culturas, do intercâmbio constante com a África e a Europa, das extensas relações com o Judaísmo, a Ciganaria, etc. No entanto, restaram apenas narrações, verbalizações e cânticos que expressam atemporalmente tais relações. Segundo consenso extensivo na comunidade de pais e mães-de-santo dos anos (19)50, a maioria dos cânticos conhecidos e então compendiados não chegava a cem anos de idade (1860-1950).
Os cânticos (ou “pontos”) expressam assim uma parte congelada das relações religiosas interétnicas, que necessitariam para ser corretamente datados de – ao menos – uma preservação de amostras da estatuária sagrada ao longo das gerações. Dessa, ainda hoje – o pouco que resta se encontra nas mãos da polícia. Por isso, torna-se muito difícil chegar à definição dos lugares específicos das identidades religiosas, com uma teoria adequada do papel das identidades eventualmente duplas ou triplas, nas fases históricas precedentes (da época contemporânea). A multiplicidade de papéis a desempenhar que se gera naturalmente numa sociedade em urbanização devia requerer oportunidades também múltiplas de transformação religiosa nos contextos étnicossociais de então.
A busca ou a rejeição de identidades culturais dava-se por certo centralizada nas oportunidades de desenvolvimento religioso. Graças à dinâmica de uma sociedade semicolonial em decomposição, tais oportunidades religiosas vinculavam-se a oportunidades de ascensão social, reais ou imaginadas. Desse modo, o complexo ambiente de luta espiritual em cada um dos ramos formados da afrorreligião brasileira não pode agora ser recuperado ou detalhado. Cada afrorreligiosidade em seu lugar, (1) o Candomblé, a (2) Macumba e a (3) `Nbandla ocupavam camadas etnicossociais idênticas do ponto de vista do colonizador, mas diferenciadas e concorrentes, do ponto de vista daqueles socialmente dominados. Ao mesmo tempo em que tais religiões afro-brasileiras os libertavam a todos, oferecia-lhes entendimentos diferentes do grau de normalização das relações etnicossociais e do grau de equilíbrio na vida pessoal. Esse processo de diferenciação dos resultados no mundo real expressava-se como um padrão de flutuações de prestígio dos ramos, dos templos e dos respectivos chefes religiosos. Certas casas religiosas entravam em declínio, ao desaparecerem suas estrelas máximas; outras não; certas outras acompanhavam ou desacompanhavam o ascenso e o declínio de seu ramo, etc.
Pelas características específicas da religiosidade Bantu, o mundo é um encontro cruzado de dois ou quatro submundos. Ou melhor, são quatro os mundos, interligados, à maneira das quatro esferas de luz de Swedenborg: (1) “este mundo”; (2) o “outro mundo próximo”; (3) o “outro mundo distante”; e (4) o “outro mundo do nada”. As relações das pessoas comuns e de suas famílias se dão com (a) seus antepassados antecedentes ou muito próximos (pais, avôs, etc) e (b) com os antepassados de seus antepassados (avos dos avôs, avôs dos avôs dos avôs, etc). A maioria de nossas desavenças se encontra assim nas relações dos dois mundos, ou seja, (1) este mundo; e (2) o outro mundo próximo. É claro que podem se dar relações mais profundas e mais complicadas, com soluções até fora de alcance. No entanto, a maioria das relações entre-mundos compreende esses dois mundos iniciais.
Desse modo, a força da intervenção do sacerdote Bantu situa-se no seu papel simplificador. Eleintermedia entre as pessoas comuns e seus antepassados, buscando “abrir caminhos”, pela percepção dos mesmos e por indicação de vias. O ganga, o nijanga, o sangoma, etc, pode situar-se num patamar menos poderoso das requisições de ritualística Bantu, graças à diversidade da mesma. Ou, se as circunstâncias o exigirem, tais sacerdotes podem tornar-se personalidades muito complexas, como agentes políticos ou históricos. No dia-a-dia das necessidades comunitárias angariam enorme prestígio ao restabelecer o equilíbrio, seja grupal seja individual. Enfrentam as baixas energias negativas, cujo acúmulo tenderia a desagregar o meio. As estratégias de desgaste de sua comunidade por forças adversas são assim compensadas e enfrentadas, com a neutralização ou reenvio de forças de malefício.
A dimensão geopolítica do espaço religioso Bantu requer (1) a tenda, seu ponto central; (2) o acesso à mata; (3) o uso dos caminhos; (4) uma ou várias “cabanas” ou quartos de assento, onde são agrupados elementos do culto. A simplicidade destas exigências facilita um alto grau de resistência das práticas religiosas Bantu à competição de outras religiões ou às atividades repressivas contrárias. A repressão só podia ser bem sucedida através do encurtamento da vida dos sacerdotes, seu permanente encerramento em manicômios, etc.
No culto Bantu, a tenda pode atender coletiva ou individualmente. Os dias de atendimento eram coletivos geralmente às segundas e às sextas, sendo os demais dias – todos ou parte deles – dedicados a atendimentos individuais e à “prática da caridade”.
No entorno da Guerra do Paraguai (1860-1880), a `Nbandla sofreu forte impacto do Kardecismo, recém-implantado no Brasil e muito forte então no corpo de oficiais do exército e da marinha. A `Nbandla, sendo já à época conhecida como Umbanda (corruptela gerada pela pronúncia), no Rio de Janeiro tinha mesmo acesso às igrejas católicas onde concentravam as tropas que eram enviadas para o “front” paraguaio. Era então nítida a associação das cores das nações africanas, na escolha dos santos católicos que deviam favorecer os iniciados ou adotados pela Umbanda.
O atendimento coletivo substituía a antiga roda comum de delírio das aldeias Bantu na África (Ku Yinga). Ali podia-se entoar cânticos reelaborados para expressar a nova coletividade, evidentemente híbrida, de parentela e consangüinidade desconhecidas. Os antepassados eram invocados de acordo com uma nova terminologia mais abrangente, produzida pelos sacerdotes para cobrir um arco mais abstrato de relações com os fiéis. Nesse sentido, pode-se observar um deslocamento do (2) outro mundo próximo para o (3) outro mundo distante. A necessidade de generalizar as relações de parentesco para todos os Bantu e não-Bantu agora (então) desaldeiados levou à mitologia das Sete Linhas, cujas cores incorporam diferentes culturas e escolhas africanas. Constituiu-se assim nova hierarquia geopolítica da vida espiritual, para corresponder aos movimentos populacionais devidos à guerra, ao recuo da escravidão e ao avanço urbanizador.
O atendimento individual reduzia os elementos dramáticos e a teatralização do culto coletivo, permitindo manter a essencialidade do atendimento Bantu tradicional. A interação entre o sacerdote e o consulente visava identificar o problema que afligia o último e estabelecer os procedimentos rituais capazes de expelir a sujidade espiritual. Sendo os rituais expelidores (a) de purificação e (b) de ressocialização, o paciente quase sempre lograva sua reinserção mais equilibrada no meio social a que pertencia, efetuando-se novas “sessões” de análise e síntese – intuitiva, quando se oferecessem resistências ou dificuldades adicionais. Os rituais buscavam a concomitância dos “quatro mundos”. Com a gradual conversão da Inbandla em Umbanda, as práticas simplificadoras tenderam a convergir com o Kardecismo e as exigências da modernização urbana, com a produção de gongás mais reduzidos e, conseqüentemente, mais “civilizados”.
No entanto, kamba, a prece, continuava a exercer pelos cânticos e pelos baticuns a indicação e a percepção dos caminhos, com um papel cada vez maior para o saber revelado ou auto-revelado. A reestruturação de parentela a partir de código de sobrevivência, vizinhança e de local de trabalho requeria uma crescente intervenção de entidades e forças abstratas, o (3) outro mundo distante. Os serviços demalefício perdem tanto lugar na quantidade da sua invocação, quanto em complexidade ritualística. Terminariam a ser enviados todos para outra “Banda”, qual fosse a Kibandla (Quibanda), à qual se atribuiria um “papel maligno”, incompatível com a religiosidade geral afronegra. Esta divisão reflete, aliás, o processo de luta entre as (1) tendências adaptativas à dominação branca e (2) as tendências puristas defensoras de uma maior compartimentação da cultura negra (1880-1920). Neste sentido, estas transformações não foram muito diferentes daquelas ocorridas no Candomblé à mesma época e expressam ambas as novas necessidades que afligem a população negra, com o aumento do desemprego e o influxo de uma maciça imigração branca no país.
Apesar do crescente papel da revelação (autohipnose), a adivinhação continuava a exercer a centralidade no atendimento dos consulentes. Ela ainda compreendia as fases (a) pré-transe, (b) transe e (c) transfiguração. O desempenho terapêutico correlato verifica-se tanto no tratamento dos sintomas de fundo psicossomático quanto no tratamento de doenças fisicamente observadas. Nesse caso, a sintomatologia obtinha assistência na farmacopéia de plantas e raízes, derivados de animais e outras associações de composição mágico-secreta. As técnicas de imantação e impregnação ainda exerciam vigoroso papel.
(2) A formação da Umbanda (1913-1960). A Umbanda Empretecida.
Uma importante viragem no processo para “tornar branca” a Umbanda deu-se com a experiência relacionada à descida do Caboclo Sete Encruzilhadas, no médium então kardecista Zélio Fernandino (15 de novembro de 1908), que levaria a uma gradual reestruturação da Inbandla como Umbanda de Linha Branca, isto é, como um ramo cada vez mais desafricanizado de religião, sob a influência dos discípulos de Alan Kardec. A Umbanda de Linha Branca iria se estruturar no período 1913 (com um conselho de cinco membros, entre os quais haveria um padre católico) a 1930, com a formação de associações civis que enquadravam no total cerca de trezentas tendas, no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo e São Paulo, nesta fase inicial. Mais tarde, o movimento se estenderia a todo o Brasil.
Dois foram os traços característicos desta nova Umbanda, daqui em diante referida simplesmente como Umbanda: (1) a leitura kardecista como fato hegemônico, com a preservação de alguns elementos de ciganaria e as Três Linhas; e (2) eliminação ou redução da Jurema na ritualística.
Na nova hierarquia cerimonial, o sacerdote perderia gradativamente a sua condição de feiticeiro (capacidade impregnadora) e avançaria enquanto hieródulo (cavalo-de-santo e médium). Os nomes africanos para o sacerdote perderam influência, poder e, portanto, desapareceram. O termo “pai-de-santo” ou “mãe-de-santo” vieram a substituir a terminologia africana. Os “três outros mundos” também desapareceram, reduzindo-se a um “outro mundo” unificado, dentro do padrão kardecista. A tradição africana de formação sacerdotal pelo discurso e pela cópia foi substituída por uma formação apenas ritualística e com apoio livresco. As relações com a Igreja Católica se reforçaram no nível de base, constituindo-se muitas vezes o culto local um complemento subordinado das práticas católicas, o chamado catolicismo popular.
As Três Linhas desenvolveram uma liturgia diferenciada, onde os milhares de entidades (“muitos”) viram-se reduzida a Pretos Velhos, Caboclos e Exus. Através desses três canais, a Umbanda reformada alegava poder acessar todas as entidades precedentes do Universo Espiritual Afro-indígena. Recorde-se que na Inbandla, tinha-se:
Número Situação correspondente
1 A energia formadora; a convergência original
7 As linhas das entidades; as entidades básicas
49 As famílias das entidades básicas
343 O número derivado de entidades
2401 “muitos”; as manifestações das entidades derivadas
5.764.801 “O imensurável”; todos os antepassados

Na crônica policial de 1850-1940 é comum verificar-se o relato da prisão de pessoas embarcadiços e marinheiros que portavam volumes com a “flor da jurema” e a maconha, trazida sempre em grande quantidade por tais “malfeitores” desde o Nordeste, para as províncias ou estados do Sul ou Sudeste.
As autoridades policiais sabiam que grande parte dessas “mercadorias” destinava-se ao consumo dos terreiros-de-santo, das linhas da Inbandla e da Kibandla, sendo outra parte consumida fora dos rituais, pelas populações de trabalhadores de origem nordestina, descendentes de indígenas ou quilombolas.
A Umbanda reformada do período 1913-1960 procurou e obteve, portanto, desvincular-se das práticas culturais e religiosas desses trabalhadores, caracterizados na crônica policial como bandidos, viciados e malfeitores. Ao se desvincular das camadas mais pobres e tradicionalistas da população, as novas federações umbandistas também lograram aproximar-se, pela sua limpeza de imagem, da chamada “classe média”, obter representação política, etc, com a eleição de vereadores e deputados, acesso a programas de rádio, etc. A política de branqueamento era dessa forma expressão do jogo de “mulatos” ladinos, um movimento autodestruidor de dentro da massa negra diferenciada etnicamente e que buscava usar esta diferenciação (“mestiçagem”) como um trunfo. Semelhante atitude era coadjuvada e apoiada pela dominação branca, em consonância com a antiga estratégia de dividir para reinar.
Também as cerimônias da Muthemba (o retorno) pela qual o consulente ou praticante era induzido ou “levado de volta” até sua terra original, logrando “ver” sua aldeia ou território ou agregado africano do qual descendia, viram-se totalmente abolidas na nova Umbanda, até pela fraqueza dos alucinógenos em uso (charuto, cachaça, defumador, etc). Esses poluentes orgânicos de baixo teor nunca lograram produzir a terrível centelha de imersão no inconsciente, que antes era obtida. Conseqüentemente, o seu nível de consolo humano e espiritual é muito mais baixo e a religião praticada menos forte para repelir o ataque aculturador de outras formas ideológicas.
No entanto, esta primeira Umbanda (1913-1960) reformada, embora de ampla difusão, foi sempre socialmente considerada uma “religião de pretos”. Ela legalizava a aproximação de brancos e pretos, sendo a maioria dos brancos que dela participavam pessoas pobres e de baixa instrução formal, que já viviam nos bolsões de cultura negra e que precisavam talvez ser educados religiosamente como negros, para suportar a adversidade de suas vidas. Nesse sentido, nela não havia muito, diferente daquelas aproximações, entre Judiaria, Ciganaria e religião Afro-indígena do fim do período colonial (1780-1830).
Quanto às pessoas de elevada posição social ou alta instrução formal que buscavam por diversos motivos às religiões estruturadas afro-brasileiras, elas preferiam então manter-se à margem de suas imagens sociais, prestando-lhes contrapartidas de eventuais ajudas financeiras, antirrepressivas ou políticas. Dessa forma, não era possível facilmente à Umbanda afastar de si a imagem de usar apenas um “biombo civilizado” atrás do qual teriam persistido as mesmas práticas sócio-culturais de elaboração e/ou condução de malefícios sociais ou individuais. As delegacias de costumes perseguiam a prática religiosa negra e a Umbanda reformada, mesmo ampliando suas linhas para quase folclorizar-se, continuou duramente perseguida até os anos (19)60.
A visão oficial do Estado quanto ao dirigente da Tenda ou do Centro Espírita (versão “civilizada” este) era de que se tratava de um criminoso, um espertalhão e um estelionatário. Um delegado de polícia nunca se perguntava como num mundo mercantil um sacerdote da Umbanda lograva obter um fiador para alugar ou comprar uma casa relativamente grande, onde se instalaria o terreiro. Isso quase sempre era visto como alguma forma de crime. Favelados, empregados de serviço, domésticas e funcionários de baixo escalão constituíam o público majoritário de tais centros espíritas. Seria, pois, de perguntar por que tais “criminosos” não agiam em interesse próprio, mas continuavam – ao contrário – pobres. A resposta mais simples para a ressurreição da tenda ou do centro tantas vezes destruído estava no apoio material de seus crentes e na solidariedade efetiva de pessoas de classes sociais menos pobres, mas em dívida espiritual para com benefícios recebidos daquele terreiro. As federações de Umbanda, a Liga São Jerônimo (SP), etc, lutaram sempre para escapar ao impacto repressivo, o que só foi obtido nos anos (19)50 e (19)60, em seu apoio a grupos políticos instalados no poder.
Quanto ao verdadeiro poder de uma mãe-de-santo, contarei um episódio de que fui testemunha, na minha infância. Uma pessoa da raça branca, que freqüentava eventualmente o terreiro de uma mãe-de-santo do Candomblé, mandou chamá-la (!) em sua casa (cerca de 11 horas da manhã). A mãe-de-santo ali compareceu, encontrando o dito político choroso, recostado ao sofá. O mesmo declarou-lhe que, em virtude do retorno de Getúlio Vargas ao poder, a instituição que o indigitado político-intelectual dirigia já tinha outro diretor nomeado, que haviam-lhe informado do ministério que o decreto já havia sido assinado pelo presidente e estava apenas “secando a tinta” para ser publicado no Diário Oficial no dia seguinte. A mãe-de-santo declarou-lhe que “ainda não era tarde” para ele manter o cargo, mas que para tal ele devia dirigir-se imediatamente ao Candomblé dela, porque o etutu (prece) é mais forte no pegí (altar do Candomblé). O mal-agradecido foi-se então para lá com a mãe-de-santo. Após o trabalho feito, a mesma disse que ele fosse para casa, porque receberia um telefonema. O telefonema foi dado por alguém horas mais tarde, a informar que o político em caso continuaria no cargo, destinando-se o quase-nomeado para outra função, por decisão do próprio presidente Vargas.
Certamente está-se aqui a tratar de simples coincidências, que os místicos refeririam a baixas energias e os gnoseólogos a sínteses-intuitivas. No entanto, é certo que todas as religiões vivem de tais coincidências, particularmente as religiões afronegras, nelas se incluindo a Umbanda de 1913-1960. O terreiro de Pai Cabinda da Aruanda na Rua do Matoso (RJ) era um lugar de mistérios, dominado pelos Okôs (entidades que gostam de lugares elevados). O iniciado sabe do que se trata. As pessoas que freqüentassem (anos (19)50) uma “tenda espírita” como aquela, teriam motivos para com ela se solidarizar ao longo de sua vida. Daí a incompreensão das autoridades ante as centenárias tentativas de destruição daquela e de outras “macumbas”. Não tenho a menor dúvida de que o poder da Umbanda reformada já era menor à época (1913-1960) do que a de outras formas da cultura religiosa negra que lhe antecederam. Isso talvez resulte da necessidade de utilizar a massa numérica da comunidade como estações de captação energética intercedente, o que requer a participação consciente dos membros da comunidade. O poder decorre da fé e a fé requer cumplicidade entre os socorrentes e os socorridos. A própria criação da Umbanda reformada, talvez expresse a perda da sinergia afro, que as pessoas mais antigas como eu se lembram de haver visto refletida no olhar dos pretos. Uma energia africana que hoje só se pode ver em algumas tendas na própria África.
A “Linha Branca” continha evidentemente um estigma para atingir a todas as formas afro-brasileiras que não se constituíam tal linha. Certamente, elas – as outras – ver-se-iam no plano da ideologia social desterradas para uma possível “Linha Preta” (por exclusão e por coincidência) provavelmente estaria na vizinhança da “Magia Negra” dos judeus e dos ciganos. Ou seja, uma suposta porta aberta ao inferno dos brancos. A desqualificação ignora também a importância para as religiões afronegras da reconversão das forças magnéticas, que permitem administrar as energias negativas, contrárias ou litigantes.
O represamento de energias negativas no corpo do praticante, seja ele sacerdote ou consulente, é fonte de possessão, distorções profundas e, no longo prazo, de destruição. Embora a Umbanda seguisse “empretecida”, ela parecia descurar através da adoção de objetivos ou ideários ecléticos, da fonte especificamente negra de seu poder. É bem verdade que as religiões afronegras são extremamente dinâmicas. Uma vez que trabalham nas condições imediatas de vida como força interveniente, tais religiões não priorizam oferecer metafisicamente uma “outra vida” no “outro mundo”, mas pluralizam as forças deste mundo com as do outro. Nesse sentido, podem subverter as relações sócio-políticas e exercem enorme poder social. Daí a grande complexidade da sabedoria especificamente negra que é o ganga saber incluir o que é exterior para obter novo equilíbrio societário, sem abandonar as tradições e as linhagens rituais do corpo religioso próprio.
A idealidade dos gangas era de fato preservada na linha dos Pretos Velhos, com os Pais João, José, Joaquim, Bento, Tibúrcio, Aruanda e tantos outros. E as avós Benta, Cabinda, Luísa, Rosa, Maria e outras tantas. Na linha dos Caboclos, Ipuareí, Tabajara, Juá, Tacomé e muitos mais, como o Boiadeiro, a expressar a dupla condição do indígena de representar a si próprio e representar a sua imagem na sociedade escravista-capitalista. É muito difícil intentar definir o campo das forças magnéticas aí representados, porque o espectro da representação por distribuição possível das faixas de ondas longas (de captação dos “espíritos” respectivos) difere de modo extenso da similar Bantu da qual é suposta ser derivada. No entanto, o seu todo seguramente representava as aspirações da massa negra presente nos terreiros de Umbanda. Mas já não representaria aquela outra massa que ali já não iria comparecer, e que predominava no Candomblé, na “Quimbanda”, na “Macumba”, etc. Portanto, essa Umbanda de Linha Branca é um fato “preto” da sociedade de urbanização, apesar do seu processo de branqueamento e do caminho que iria tomar na fase subseqüente (1960-1990).
Também no quadro das transformações religiosas, a história se processa por saltos, que liberam camadas de mudança com forma fortemente ligada a cada geração. Mesmo quando se confirmam tendências evolutivas já anteriormente definidas, não há uma continuidade necessária entre os atores que vêm representar os tão esperados papéis e seus antecedentes, que aparentemente já haviam fixado tais personagens.
A rotatividade geracional entre os terreiros e a sucessão de seus líderes também fez suas vítimas, quanto à preservação e continuidade de rituais, de encantados e de entidades, e de processos de encantamento e de tratamento. Uns se foram e outros chegaram. A enorme liberdade que a formulação abstrata da tradição confere ao líder religioso afro-brasileiro pode fazer caducar rapidamente inúmeras práticas e estabelecer outras, no curso de uma única geração. Nas “salinhas de café” das federações de Umbanda, quando os “novos” não estavam presentes, chegava-se a falar em “mercantilismo” e “traição”, nos anos (19)80. Sem dúvida, os caminhos que predominaram na fase 1960-1990, embora autorizados pelo crescente papel da Revelação nos cânones da Umbanda, não podiam satisfazer aos sobreviventes da tradição da “Reforma dos Cinco” (1913).
Comparando as ditaduras de (1) 1930-1945 e (2) 1964-1985, a segunda se revela muito mais freqüentadora dos terreiros, em busca de consolo, de cura e de votos, do que a primeira. Nesse sentido, o impacto das forças folclorizadoras tinha que se fazer sentir muito mais no segundo caso, porque os chefes-de-terreiro muitas vezes sentem a necessidade de corresponder à expectativa de cenário dos seus consulentes mais poderosos e importantes. Nesse caso, os terreiros mais famosos e mais ricos são aqueles que melhor refletem os preconceitos da sociedade.
(3) A Umbanda Embranquecida (1960-1990).
A Umbanda desta última fase encontrou-se cada vez menos negra, no sentido africano do termo, embora recorresse à cultura dravidi como elemento formal, importando traços e formas rituais da Índia para mascarar práticas afro-brasileiras e kardecistas. A estrutura dos rituais viu-se, assim, bastante modificada. Os curandeiros e profetas quase desapareceram, com suas adivinhações, mensagens e farmácia tradicional. A prática dos passes permaneceu, com os banhos-de-erva e as fórmulas das rezadeiras. A profunda concentração e intelectualização dos chefes-de-terreiro que caracterizavam os métodos indutivos bantuviriam a se rarificar nesta fase. Tal se deu com o gradual desaparecimento da etnocultura negra e a prevalência do médium no lugar do mamudongo e do cambono no lugar do inhaúti. O terreiro continuou uma área intermédia onde se encontram forças adversas, mas existe um sentido próprio na sessão para deixar lá fora as entidades insondáveis. A função impregnativa subsiste, embora enfraquecida. Continua-se ali a praticar diferentes graus de hipnose, inclusive a autohipnose. As entidades espirituais são todas de outro mundo, eliminando-se as diferenças para aqueles três mundos. Não é tão evidente a portação de poderes sobrenaturais ou mágicos, não se ouvindo o discurso ou a afirmação entre as entidades presentes doantepassado incorporado. A farmacopéia adotada revela-se mais funcional que impregnativa. Ocorre ali, como antes, uma reconstituição de integridades psíquicas, embora as identidades culturais atuais não sejam explicitamente afrobrasileiras.
Utilizam-se menos instrumentos antigos do culto, tanto batuques, tambores e cânticos quanto elementos do kadza. Neste, permanece o uso de sementes, barulho e peças geométricas. É comum encontrar-se o uso de cartas de tarô e outros elementos da ciganaria. Permanecem rituais de ressocialização e de purificação, dentro e fora da tenda, em geral tornados menos complexos e aparentemente para atender as limitações do mundo urbano. Por exemplo, a escolha, recolha e preparação dos remédios obedece a uma divisão de trabalho, feita fora e à parte do sistema de culto.
As relações de apoio já se situam de todo nesta fase fora da estrutura de parentesco. O elemento dinâmico tornou-se por excelência a Revelação, com dezenas de terreiros que representam apostologização independente e o recebimento de uma missão específica desde um Guia, para o responsável do mesmo.
Deste modo, embora haja nesta Umbanda uma metodologia e uma origem em comum, cada grupo de terreiros parece tomar um destino próprio que expressa uma grande diversidade de papéis e divergências. O atendimento ao público mantém a forma coletiva na sessão de passe e a forma individual na consulta. A manifestação dos desejos negativos continua aí a ser reinterpretada, buscando tanto (a) a normalização das relações sociais em que a Umbanda enbranquecida se desenvolveu como parece caracterizar um (1) abandono da afirmação afrobrasileira, com conseqüente (2) adaptação aos objetivos sociais da dominação vigente. Esta nova Umbanda expressa uma expectativa de ascensão social de brancos e mestiços pobres, que foram socializados na margem afronegra da sociedade brasileira e que desejam – ainda neste mundo – cruzar para a margem branca da mesma. A construção da sua própria Umbanda expressa desse modo a sua falta de treinamento para elaborar uma culturalidade exclusivamente branca, pela carência dos signos, da linguagem e da mítica que lhes permitisse uma outra invenção, capaz, esta sim, de havê-los situado na margem desejada.
No entanto, ao construírem a sua própria Umbanda, tomando-a dos seus antepassados negros de certa forma, tais elementos sociais produziram um importante aparato cultural, que tem vindo a ocupar um lugar específico entre a sobrepopulação ativa do chamado Cone Sul, expandindo-se além fronteiras para o Paraguai, o Uruguai e a Argentina. Nesse sentido, a dimensão desta Nova Umbanda parece-se muito com aquela da Ciganaria de 1750-1840.

Bibliografia
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VALENTE, Waldemar. Sincretismo Religioso Afro-Brasileiro. São Paulo: CEN, 1955.

[1] Wilson do Nascimento Barbosa é professor titular do Departamento de História da Universidade de São Paulo. É pesquisador de Cultura Afro-Brasileira desde os anos 1960 e autor de várias obras, entre elasCultura Negra e Dominação publicada pela Editora UNISINOS/RS.